Introdução
Poderemos somente entender a situação atual
de alguém ou algo se nos esforçamos em entender a sua história e trajetória.
Semelhantemente, se desejamos entender a psicologia de hoje, necessitamos nos
esforçar em compreender como pensadores de diferentes épocas e das mais
diversas áreas do saber contribuíram para o que entendemos hoje como ética e
psicologia.
Entre os muitos pensadores podemos destacar
nesse texto o religioso e filósofo Martín Lutero que revolucionou a história de
toda uma época e abalou as estruturas de um mundo religioso em que o poder e a
interpretação divina estavam ás mãos de um grupo de pessoas.
O objetivo desse texto não é dissertar a
trajetória religiosa ou biográfica de Lutero, mas entender como essa trajetória
influenciou o pensamento ético e psicológico da idade média, moderna e
contemporânea. Desejamos ser fiéis ao relato, livrando-nos se possível, de estereótipos
e preconceitos, o que aqui queremos pontuar é o homem Lutero e suas contribuições.
A individualidade ameaçada – Contexto
histórico
O Velho Mundo estava sujeito a duas
majestades: O Rei e o Papa. É complicado afirmar quem exercia mais poder sobre
as massas, porém, o que podemos dizer que eram os eclesiásticos que mantinham
maior contato com o povo.
Visto que a Igreja Católica advogava um tipo
de teocracia, ou governo sob a regência de Deus, ela como religião oficial,
mantinha o direito de interpretar Deus, representá-lo na terra e encaminhar a
inteira nação à salvação através de suas obras em favor da própria Igreja,
constituída pelo corpo eclesiástico (os clérigos) sob a regência do Sumo Padre,
o Papa.
A Igreja, ao assumir essa posição de
interlocutora entre Deus e o homem, na verdade exercia forte influência sobre o
Estado, pois obviamente os governantes de alguma forma também queriam ganhar a
salvação.
Portanto, substantivamente estavam todos
submissos ao Papa e sua autoridade eclesial, e, em muitos casos, administrativa
e política.
É também um fato que, influenciados pelo
pensamento neo-platônico de que a alma humana imortal estava dividida em três
partes e que a mais nobre era a racional, os sacerdotes por terem se
desenvolvido como homens da razão, da intelectualidade e do raciocínio eram
considerados superiores aos demais. Assim, todos os outros quer fossem servos,
escravos e soldados estavam subordinados aos intelectuais, já que os mesmos
tinham desenvolvido a parte mais nobre da alma e por terem participado da
seleção social baseadas em suas aptidões intelectuais (FREIRE, p. 35). Os
principais intelectuais da época pertenciam a determinadas ordens religiosas e
a investigação filosófica pautava-se entre a compreensão da fé e razão. A fé e
a religião era o conhecimento mais elevado e, portanto, a preocupação
filosófica resumia-se em explicar a “fé cristã” racionalmente.
Percebemos assim que a individualidade dos
que comungaram nessa época estava ameaçada por um tipo de casta “divina”
desenvolvida a partir dos interesses clericais. Estavam todos sujeitos e submissos
a intelectualidade papal, a moralidade por eles defendida e sua concepção de
sociedade. Quem ousasse em questionar ou opor-se a essa hierarquia era tachado
de herege, desprezado pela Igreja, pela comunidade local e pelo restante da
sociedade. Nenhum indivíduo gostaria de contrariar esse regime e ter sua
salvação eterna comprometida. Sim, a individualidade daquelas pessoas estava
comprometida.
O papel da Igreja era lembrar a condição
pecadora do homem e propor a salvação de sua alma através de obras em prol da
Igreja, como pagamento de dízimo e de indulgências, e o papel do Estado era
secular e temporal, e como característica primordial usar a força física
(intimidação) a fim de que todos pudessem seguir os preceitos estabelecidos
pela Igreja. Sobre isso, Etienne Gilson chega a afirmar que “para um pensador
da Idade Média, o Estado está para a Igreja como a filosofia para a teologia e
a natureza para graça”. (Gilson, 1993).
Porém, nesse meio tempo houve aqueles que
estavam descontentes tanto com a teocracia e eram a favor de um Estado Laico ou
não-religioso e também com a centralização no poder eclesial mantido pela
hierarquia católica. Muitos queriam recuperar a individualidade perdida e
estabelecer um tipo de código de ética que impedisse que o poder central da Igreja
mantivesse o monopólio e dominasse através da argumentação as massas populares.
Lutero x Escolásticos – Busca individual
por Deus
John Wyclif |
No século XIV, o teólogo inglês John Wyclif, doutor em teologia na Universidade de Oxoford, defende a idéia de uma igreja nacional, traduz a bíblia para o inglês e recusa a intromissão da Cúria romana. (ARANHA E MARTINS p. 231)
Como vemos os moinhos começam a mover-se no interior da Igreja e muitos começam a clamar pela necessidade de haver o direito de que cada um pudesse investigar por si mesmo os escritos sagrados. Essas divergências tiveram uma aurora na Reforma Protestante do século XVI com Martin Lutero.
A fé como dádiva gratuita de Deus. Era assim
que Lutero enxergava. Para ele a salvação não dependia de fatores externos, mas internos e qualquer pessoal poderia individualmente buscar a salvação de sua própria alma. Para ele as obras exigidas pela Igreja não
proporcionariam ao homem paz de espírito e felicidade que buscavam, mas que era
sua busca individual pela virtude da fé que os levaria ao encontro da paz e da
felicidade.
Porém, por que Lutero revolucionou uma época
e influenciou a história, será que seus escritos não se resumiam a simples
reflexões teológicas e buscas espirituais? Se, pretendemos analisar com mais
detalhe o que Lutero rejeitou veremos que o que ele pretendia era revolucionar
e contribuir para a mudança de um modo de pensar.
Pensemos um pouco no filósofo e teólogo
católico Tomás de Aquino. O objetivo de Tomás de Aquino era manter o monopólio
da Igreja no estudo do psiquismo já que os conhecimentos produzidos por ela
passaram a ser questionados. O livro Psicologias
– Uma introdução ao estudo da psicologia faz uma importante observação
nesse sentido ao dizer que
Aristóteles |
São
Tomás de Aquino foi buscar em Aristóteles a distinção entre essência e
existência. Como o filósofo grego, considerava que o homem, na sua essência,
busca a perfeição através de sua existência. Porém, introduzindo o ponto de
vista religioso, ao contrário de Aristóteles, afirma que somente Deus seria
capaz de reunir essência e existência, em termos de igualdade. Portanto, a
busca de perfeição do homem seria a busca de Deus.
Esse conceito, mais uma vez
mantinha a Igreja e seu papado como autoridade no que se diz a busca pela
satisfação individual e ética humana. Ao apontar a relação entre Deus e o homem
sob uma perspectiva filosófica e psicológica (salvo que falar de psicologia
nessa época é sempre relacioná-la ao campo religioso), a Igreja através de
argumentos racionais explora mais uma vez a individualidade do homem, que
subordinado a Deus estava subordinado a Igreja que representava Deus na Terra.
Lutero na verdade, questiona
esse pensamento ao dizer que o homem pode individualmente, sem a interferência
da Igreja, buscar a essência de sua existência, a felicidade e a paz de
espírito.
Ao passo que o Escolástico
São Tomas de Aquino tenta explicar a fé através da razão, Lutero rejeita essa
ideologia, afirmando que a fé dispensa o conhecimento e a discussão. Defendendo
a fé e a busca individual por Deus, Lutero sabiamente prega que se a escolha
religiosa é individual, a hierarquia católica eclesiástica era fútil e inútil.
Subjetividade e escolha
religiosa
Estamos interessados em
saber como o luteranismo contribui para a formação da filosofia e de nosso
conceito sobre subjetividade.
Como sabemos, o objeto de
estudo da psicologia é contribuir para o estudo da subjetividade, porém,
entendamos o que é subjetividade.
O livro Psicologias – Uma introdução ao estudo da psicologia traz uma descrição interessante para a
palavra subjetividade, a autora diz:
“a
subjetividade é a síntese singular e individual que cada um de nós vai
constituindo conforme vamos desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida
social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado, por ser única,
e nos iguala, de outro lado, na medida em que os elementos que a constituem são
experiência dos no campo comum da objetividade social”. (BOCK, 2008)
Como vemos, a subjetividade
são as nossas manifestações afetivas e comportamentais, o mundo de idéias,
criada através de nossas relações sociais.
Lutero, portanto, abalou ao
dizer que o homem tinha direito de escolher
sua religião, as estruturas sociais e culturais de uma sociedade e
influenciou diretamente o desenvolvimento da subjetividade nos indivíduos de
sua época e das posteriores. Isso porque, a subjetividade não é inata ao ser
humano, antes é desenvolvida aos poucos através de sua atuação no mundo social
e cultural. Ao mexer com a estrutura desse mundo, Lutero altera o conceito de
subjetividade e psiquismo, pois “criando e transformando o mundo (externo), o
homem constrói e transforma a si próprio”. (BOCK, 2008)
Lutero movimentou e
transformou uma época, sendo assim um dos que se tornaram responsáveis pelo
conceito acima expresso de subjetividade, tomada como algo individual, baseada
através de nossas escolhas e moldada pelas condições sociais e culturais de uma
época. Ele trouxe novos elementos ao conceito de subjetividade como
individualidade e escolha, ao liderar a Reforma Protestante ele agrega novas
experiências e modifica e renova as determinações dos seres em seu mundo
interior.
Ao traduzir a Bíblia
Sagrada, ele dava a cada indivíduo a possibilidade de entendê-la por si mesmo,
para ele não existia a necessidade da ajuda ou explicações de um clérigo. Dessa
forma, mais uma vez ele dá às pessoas o direito de por si mesmas entenderem a bíblia,
compreenderem a si mesmas e criar novas rotas e utopias. Ele abriu caminho para
novas ideologias e formas de pensar que dispensavam a autoridade da Igreja sob
o psiquismo humano.
De uma forma mais
contundente, a autoridade papal foi questionada e a individualidade do Ser e
sua busca pessoal por auto-realização foi defendida pela liberdade de obtenção
do conhecimento.
Além disso, ao discutir
política, Lutero convoca uma reflexão ainda mais profunda sobre o papel do
Estado e da Igreja em uma sociedade e altera a constituição da mesma que foi
por tantos séculos defendida pelo argumento, e quando esse falhava, pela
espada.
De forma similar, ao
promover o acesso da pessoa comum às escrituras sagradas e a oportunidade de a
interpretarem por si mesmas, ele contribui para que o modo de pensar
segregacionista platônico de divisão da alma fosse de certa forma alterado,
pois não eram só mais os intelectuais que podiam ou tinham condições de
interpretar a bíblia devido a suas aptidões, mas até mesmo escravos, servos,
soldados e o próprio rei o podiam fazer.
Conclusões
Sem sombra de dúvidas a
Reforma liderada por Lutero alterou a forma de pensar de uma época inteira,
defendeu a individualidade ética, a liberdade de escolha e questionou o
monopólio intelectual dos religiosos consagrados. Todos esses fatores sem
dúvida contribuíram para a modificação ou renovação da subjetividade dos
indivíduos, acarretando novas impressões de mundo externo que influencia o
mundo de idéias de cada um.
A Reforma Protestante foi
protestante em ainda outro sentido, pois questionou os conhecimentos produzidos
pela Igreja e protestou a autoridade que ela queria manter sobre o estudo do
psiquismo humano. Sem dúvida, a reforma não foi apenas religiosa, mas cultural,
social e política e foi o ponto de partida para que posteriormente outros
pudessem estudar o psiquismo sem a interferência da Igreja. Mas o beneficio
maior, sem dúvida foi a modificação de um mundo externo que passou a
influenciar diretamente o interior humano, convidando cada uma para refletir
mais e melhor sobre questões que dizem respeito à individualidade humana e
busca por felicidade e paz de espírito.
Todos esses fatores
influenciaram a formação da psicologia e são dados importantes para ela, já que
esta reforma religiosa contribui para que comece a ocorrer uma separação entre
conhecimento religioso e conhecimento psicológico.
Bibliografia
ARRANHA, Maria Lucia de Arruda/ MARTINS,
Maria Helena Pires. Filosofando –
Introdução a Filosofia. 3 ed. São Paulo, SP: Moderna, 2003.
Bock, Ana Mercês Bahia. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia/Ana Mercês
Bahia Bock, Odair Furtado, Maria de Lourdes Trassi Teixeira – 14ª edição – São
Paulo: Saraiva, 2008.
FREIRE, Izabel Ribeiro. Raízes da Psicologia. 12 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010
Gilson, Etienne. O Filósofo e a Teologia, Editora Paulus, 1993.